O beijo que não beijei

Acostumada desde criança a sempre manter os cabelos curtos, tinha o hábito de cortá-los quando estavam na altura dos ombros. Na frente de casa, morava um vizinho muito simpático e conhecido da mamy de uns tempos que não vivi, que fazia uns bicos como cabeleireiro. Então, quando era preciso solicitava dele o serviço. Era sempre o mesmo corte no ombro e em camadas.

Não lembro o dia, mas teve uma vez e última que ele cortou meu cabelo. A mesma técnica, borrifava água, penteava e tesouras trabalhavam. No final, ele sempre dizia para eu fechar os olhos e acertava as pontas dos cabelos na frente e limpava a minha face. Até que nesse dia o simples ritual foi quebrado por um impulsivo gesto.

Nessa hora, eu deveria estar em pé, porque recordo que me afastava para trás e ao mesmo tempo tentava empurrá-lo. Ele me segurava forte e me beijava de maneira inescrupulosa. Ninguém apareceu para flagrar aquele que me roubava mais do que um beijo. Até que consegui me afastar e ele correu.

As palavras não saíam, me senti enojada e até mesmo suja, eu deveria ter uns 16 anos quando isso aconteceu. Os pensamentos se tumultuavam: "Como pode? Ele é amigo da mamãe! Tem idade pra ser meu pai, e ainda casado!". Não demorou muito, o vizinho voltou agoniado para pedir desculpas e o meu silêncio. Se você quer saber, eu era inocente pra confiar nas pessoas que conhecia desde criança, inclusive na pessoa que vos falei. Depois de muitos anos, relatei o fato para uma ou duas amigas. Até hoje, minha mãe não sabe.


Comentários

Karen Harumi disse…
Eu vejo até cores quando leio algumas coisas que você escreve! Tem algo em você, que mesmo ao vivo, faz com que eu me sinta um bocado criança e resgata sentimentos instantâneos, até a minha voz muda dentro da minha cabeça! Como se eu viajasse no tempo para a época da minha infância e pensasse como em 1999 - é meio difícil explicar pq poquíssimas vezes isso aconteceu comigo, mas lendo os seus textos eu sinto isso.

...Nesse conto em especial, apesar de ser na adolescência, eu sinto isso ainda mais forte, como se eu estivesse lendo algo proibido. Uma denúncia registrada e exposta que não é escutada, como se tivesse um filtro que só os que possuem uma ingenuidade juvenil pudessem entender.
Elle Custódio disse…
Nossa, linda. Obrigada por expressar o que sentiu ao ler esse texto. Na época, acredito que foi exatamente isso que eu quis transmitir "uma denúncia" e "hey, muitas passam por isso". Mas também senti que não fui escutada, ou como sempre estivesse esperando alguém ler pra saber... entende?

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