Descoberta

 Enquanto lia, deitada na cama. Ele tocava ao lado, sentado à frente do computador. Quando o visitava, passávamos horas assim. Ele estudava para passar no ENEM durante o dia, mas todas as noites, às 20h, e no sábado à tarde e domingo, ouvia música e se agarrava ao seu violão. Cantava e tocava com paixão. Seu repertório era vasto, com mais de 49 músicas memorizadas.

 Uma vez, lancei um olhar na sua direção. Como era lindo contemplar uma pessoa apaixonada pelo que fazia. Não era só o apego pelo objeto que o acompanhava desde a Argentina por quase uma década. Suas histórias antigas da vida boêmia. Suas horas gastas na frente do Ableton Live criando batidas. Era seu entusiasmo que me encantava. Um homem de muitas camadas. Talentoso na cozinha. Com uma memória de elefante e conversas incomuns. Criador de logos minimalistas. Ovolactovegetariano como eu. Enjoado pra caramba. Mas que ninguém precisava perguntar qual era o seu sonho. Pois ele era músico sem plateia com algumas letras riscadas em folhas soltas perdidas dentro de livros. 

"Sabe o que admiro em você e em algumas pessoas? E essa paixão que vocês têm pelo que fazem, eu queria ter". Era verdade, se não era facilmente apaixonada por alguém, queria por fazer algo. Com seus grandes olhos verdes me encarou, "você é apaixonada". Pensei que ele fosse dizer que era por ele, mas não. Falava sério. "Sou? Sério?". Deu uma espreguiçada e completou, "sim, você é apaixonada pelas palavras". 

Naquela hora, foi como se uma cortina de nuvens tivesse se desfeita e o céu iluminado me desse as boas vindas. Clareou. Eu sorri. Por alguns segundos recordei a cena de quando vi a primeira cartilha de ABC. As letrinhas dançavam na minha frente e eu queria conhecê-las. Só tinha 4 anos. Aos 6, já lia uma pilha de Comics que ganhei do amigo da minha mãe. Aos 8, lia feliz a primeira coleção de contos de fada presenteada pelo tio. Tive um flash de memórias. 

Os livros sempre se fizeram presentes. E eu ausente do mundo com eles. Na adolescência, enchia minha agenda e fichários com poemas. Inspirada pela literatura brasileira e crush que tinha pelos garotos. Ele só me disse isso, e me senti muito grata por me mostrar algo que estava diante de mim e não via. A partir daí, pude me enxergar como alguém que fazia arte. Não só uma apreciadora. 

Por alguns minutos pude me deliciar com sua frase "você é apaixonada, sim...". Larguei o livro de lado, coloquei as mãos atrás da cabeça e fechei os olhos. Só queria me deliciar na boa música tocada por ele. Espero que você, assim como eu, se descubra apaixonada(o) por algo, nem que seja com a ajuda de um bom amigo. Porque o entusiasmo é contagiante. 

Comentários

Paulo disse…
Gostei muito do conto ou sei lá como assim se chama,mas é muito rico nos detalhes da descrição.
Paulo disse…
Amei o que li e achei muito rico os detalhes da descrição
Elle Custódio disse…
Obrigada 😊 Que bom ter gostado!

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