Abril Despedaçado


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SALLES, Valter. Abril Despedaçado. Brasil/Suíça/França: 2001.
Abril de 1910. No sertão brasileiro, uma camisa manchada de sangue agita com o vento. O filho do meio da família Breves, Tonho, é incitado pelo pai a vingar a morte do seu irmão mais velho, vítima de uma luta antiga entre famílias pela posse da terra.
Se Tonho cumprir sua missão, sabe que será então perseguido por um membro da família rival, como designa o código de vingança da região. Preocupado pela possibilidade da morte é impelido pelo seu irmão menor, Pacu, e, Tonho começa a questionar a lógica da violência e da tradição.
Num momento tão atribulado para Tonho que tem que cumprir sua missão e, continuar auxiliando na produção de rapadura. Surgem dois artistas de um pequeno circo itinerante que cruzam o caminho dele e de Pacu – contribuindo ainda mais para que o rapaz aumente seu anseio de quebrar a lúgubre tradição das duas famílias. Após conhecer a jovem mulher que engole fogo e é trapezista, Clara; desperta em Tonho o desejo de se opor à morte certa; o anjo cor de jambo no vôo do trapézio o inspira esperança para enfrentar a triste sina.
Tonho leva seu irmão clandestinamente para ver a apresentação circense num povoado próximo, mas ao chegar a casa é surpreendido pelo pai indignado com a atitude do filho – que é punido duramente - enquanto ele e sua esposa vivem o eterno luto das gerações vítimas da revanche. A camisa com a rubra nódoa pendurada no varal determina o tempo que falta para que Tonho exerça sua obrigação.
O tempo passa, o silêncio impera. Debaixo de uma solitária árvore está sentado Pacu que se diverte com as figuras do livro que recebeu da trapezista. O pai, sempre lhe chama para os afazeres, lhe roubando dos seus preciosos momentos em que se lembra da sereia e do mar de um bravo sertão. O menino se resigna em aceitar o código de morte, ele lê as figuras, cria histórias e mesmo com sua inteligência juvenil – limitada pelas suas vivências – sabe que o ciclo deve parar. O menino não quer mais ver a morte, por esse motivo torce para que Tonho fuja do infortúnio que seu tirano pai insiste em chamar de honra.
O menino voa no balanço. A moenda com suas engrenagens continuam a girar. E o sangue da camisa já amarelou, chega o momento do confronto sorrateiro em que Tonho mergulha na escuridão para surpreender sua vítima. Do outro lado, a família rival espera. O previsível acontece, o inimigo está morto. No velório, o choro e a dor, e a certeza de que Tonho será a próxima vítima. Assim como nas guerras, oficiais e representantes de países em conflito fazem trégua e se encontram para discutir sobre possíveis reconciliações; o pai juntamente com Tonho foi oferecer seus pêsames ao velho da família inimiga. É quando o ancião indaga a Tonho: “Quantos anos tu tem? 20. A tua vida agora ta dividida em dois. Os 20 anos que tu já viveu e o pouco tempo que te resta pra viver (...). Tu tá vendo aquele relógio ali? Cada vez que ele marcar mais um, mais um, mais um...ele vai tá te dizendo: menos um...”.
A história se repete, o ciclo continua, no entanto, o episódio agora acontece na família rival. A espera é a mesma; a mancha vermelha se amarelar cronometrando o tempo. A família de Tonho já sabe, o rapaz é avisado para que não fique longe do pai, porém, Tonho sonha com a liberdade, e a figura da mulher cor de jambo volta à memória – como o ribombar de uma trombeta. Ele sai, segue o caminho para o vilarejo onde estão os dois artistas do circo. No braço, a braçadeira, que indica que já está morto.
Tonho volta para casa, frustrando o desejo da mãe e do irmão de vê-lo longe e livre da morte. Mas o código tem que ser cumprido, até não restar ninguém para contar a história. Sobre os ombros do rapaz – que viveu apenas duas décadas –, pesa a agonizante espera. A noite cai, a chuva também. Pacu festeja o cumprimento de sua profecia, pois ele avisou: vai chover! Não era só a chuva que o menino avisava. O previsível acontece; uma sombra se move na mata ressecada, eis que espera.
Clara aparece em meio ao temporal, ela também quer ser livre, e vai à busca de Tonho – eles se enlaçam em seus desejos íntimos de prazer e liberdade. Enquanto isso, Pacu sentado na janela sorri para a chuva, mas a chuva não sorri. Na madrugada, a trapezista se despede e avisa que vai esperar ele tomar sua decisão. Pacu desce da janela, coloca o chapéu, ele tenta se lembrar de uma história – a história da sereia –, caminha, coloca a braçadeira de Tonho em seu próprio braço, continua caminhando e, consegue lembrar. Parece feliz.
A chuva cessa. Ouve-se um estrondo. Não é o barulho de um trovão, foi um tiro. O pai se acorda com a certeza de que Tonho está morto, a mãe estremece. Ambos correm para fora. No chão, a pequena criatura sem vida, é Pacu. Tonho corre, seu irmão está morto – morreu em seu lugar. O pai esbraveja para que o rapaz vingue a morte do menino, no entanto a mãe implora para que ele pare com este ciclo. Não existe mais nada a ser feito, as pessoas morreram, nada restou. É o fim.
O exílio, a errância e a busca da identidade são os temas centrais das obras de ficção e dos documentários dirigidos por Walter Salles. Abril Despedaçado (Indicado como melhor Filme Estrangeiro pela Hollywood Foreingn Press Association, pelo National Board of Review e pela British Academy of Film and Television Arts. Abril Despedaçado ganhou o Prêmio do Público Jovem (Leoncino d’Oro) no 58º Festival Internacional de Cinema de Veneza). foi inspirado pelo romance homônimo de Ismail Kadaré.
Neste filme, Walter Salles usa a estética do deserto compondo o cenário dramático dos que vivem no sertão do Brasil. Existe toda uma conotação presente na obra que convida o espectador para a reflexão. A paisagem desértica que aponta para um povo avulso, negligenciados pelos políticos. Transporte rústico, roupas antigas, que indicam uma época com pessoas presas a tradições. Rostos queimados e ressecados sob o intenso sol, marcados pelo exaustivo trabalho por pouco dinheiro.
A metáfora dos bois que continuam a girar na moenda, mesmo com o trabalho concluído – revela que o ciclo não acaba. Os elementos que compõem o cenário são tão importantes para a construção da narrativa quanto os personagens. “Objetos como o balanço e a roda da bolandeira marcam o tempo, assim como as engrenagens de um relógio. O silêncio fortemente empregado no filme também registra a passagem do tempo”, explica o diretor Walter Salles.
Na fotografia, Walter Carvalho marcou presença com seu belíssimo trabalho. A cena em que Clara gira no trapézio é ousada, criativa e poética. Quando Pacu empurra Tonho no balanço, dizendo que ele pode voar – a cena é incrível – é o momento em que dois irmãos cúmplices do mesmo desejo se divertem numa brincadeira infantil. As cores também acrescentam, luz e sombra são empregadas fortemente do inicio ao final do filme, demonstrando um cenário marcado pela morte. Como disse Zuenir Ventura (O Globo), a obra cinematográfica é uma fábula de valor universal.
A história é dramática, ambientada no sertão brasileiro, mas através dessa obra é possível uma maior compreensão do que ocorria há muitos anos atrás, quando pessoas morriam por um pequeno pedaço de terra. Onde ricos latifundiários, ceifavam as vidas de humildes trabalhadores que apenas ocupavam o que era seu por direito e batalhavam pela sobrevivência. Quantos crimes podem ter ocorrido – pela mesma razão, posse de terra – e foram esquecidos?
A 23 km da cidade do Amapá, aconteceu uma história com o mesmo motivo, mas que não ficou oculto por muito tempo. É o caso brutal – em que homens agitados por motivos desconhecidos e seguindo ordens – invadiram a pequena fazenda Campo Alegre e assassinaram a família Magave. Não existia rixa de família como tradição, não existiu um ciclo em que um mata o outro por honra, apenas por um único pretexto: ambição.
[DG]

Comentários

Ana Carolina disse…
Nossa, somente hoje vi o seu comentário no meu blog sobre o filme abril despedaçado! Estou aqui e vou ler sua resenha, é realmente um filme muito sensacional, e com certeza tem conteudo suficiente para um tcc!


parabéns :)
lerei seu blog sim :)

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